O sistema jurídico brasileiro é, para muitos, um labirinto de termos técnicos e regras complexas. Um dos conceitos que mais geram curiosidade e, por vezes, indignação na população é o chamado foro por prerrogativa de função, popularmente conhecido como “foro privilegiado”. Recentemente, a discussão em torno da competência criminal do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar figuras públicas, como ex-presidentes, ganhou destaque com o voto do Ministro Luiz Fux, na Ação Penal nº 2668, do STF, no dia 10/09/2025, reacendendo o debate sobre quem deve ser julgado por qual tribunal em nosso país.
Mas o que exatamente significa o foro por prerrogativa de função? É um privilégio concedido a certas pessoas ou uma salvaguarda para as instituições? E por que o que acontece em Brasília, nas mais altas cortes do país, tem impacto na sua vida e na percepção de justiça que você tem? Neste artigo, vamos desvendar esse tema, explicar seus fundamentos, quem o possui, as principais críticas e, finalmente, o significado dos debates atuais no STF para a justiça brasileira como um todo. Prepare-se para entender de forma clara um dos pilares do nosso sistema judicial.

O que você vai encontrar neste artigo
ToggleO Que é o Foro por Prerrogativa de Função (o Popular “Foro Privilegiado”)?
Para começar, é fundamental desmistificar a ideia de “privilégio”. O foro por prerrogativa de função não é um benefício pessoal concedido a indivíduos, mas sim uma regra de competência estabelecida pela Constituição Federal e por outras leis, que visa proteger a função pública e a estabilidade das instituições. Em outras palavras, ele determina que certas autoridades, em razão do cargo que ocupam, sejam julgadas por tribunais de instâncias superiores, e não pela justiça comum de primeira instância.
A lógica por trás dessa regra é evitar que autoridades em pleno exercício de suas funções, com responsabilidades cruciais para o funcionamento do Estado, sejam alvo de perseguições políticas ou de ações judiciais que possam desviar sua atenção de suas atribuições ou comprometer a independência de seus cargos. A ideia é que o julgamento por uma corte superior ofereça maior garantia de imparcialidade e de que o processo não será utilizado para fins escusos, mas sim para apurar fatos com o devido rigor.
Uma Proteção ao Cargo, Não à Pessoa
É crucial entender que a prerrogativa está atrelada ao CARGO, e não à pessoa que o ocupa. Isso significa que, se uma autoridade deixa de exercer aquela função específica, ela geralmente perde o direito ao foro por prerrogativa de função e passa a ser julgada pela justiça comum, salvo algumas exceções específicas que veremos adiante. A intenção é que a defesa da instituição não seja confundida com a defesa da impunidade do indivíduo. A estabilidade e a capacidade de deliberação do poder público são os bens jurídicos protegidos.
Origem e Finalidade na Constituição Federal
A previsão do foro por prerrogativa de função no Brasil remonta à Constituição de 1824 e foi mantida em todas as constituições subsequentes, consolidando-se como um pilar do nosso sistema judiciário. Na Constituição Federal de 1988, diversas autoridades têm sua competência de julgamento definida em diferentes artigos. A finalidade principal é assegurar que o exercício do mandato ou da função pública não seja prejudicado por questões processuais de menor relevância ou por pressões indevidas. Garante-se, assim, que as decisões tomadas por essas autoridades não sejam influenciadas por ameaças de processos em instâncias inferiores, onde poderiam estar mais vulneráveis a pressões locais ou a retaliações políticas.
A Constituição Federal e a Evolução da Interpretação do Foro por Prerrogativa de Função
Para compreender a fundo o debate sobre o foro por prerrogativa de função, é essencial analisar o texto constitucional que o fundamenta e, principalmente, como o Supremo Tribunal Federal (STF) tem interpretado essa norma ao longo do tempo.
O principal dispositivo constitucional que estabelece a competência do STF para julgar autoridades com prerrogativa de função é o Art. 102, I, “b”, da Constituição Federal de 1988. Ele prevê:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;”
Ao ler o texto, a interpretação inicial, por muitos anos, era de que, uma vez que uma pessoa ocupasse um desses cargos, ela seria julgada pelo STF por qualquer infração penal comum, independentemente de o crime ter sido cometido antes de assumir o cargo, depois de deixá-lo, ou se tinha ou não relação com a função. A prerrogativa era vista como um “título” que se carregava.
A Virada Interpretativa do STF: Limitando o Alcance do Foro
No entanto, essa interpretação ampla gerou o cenário que vimos anteriormente: processos se arrastando, a sensação de impunidade e uma sobrecarga de trabalho para o STF, que deveria focar em questões constitucionais mais amplas. Diante disso, o próprio Supremo, em um marco de sua jurisprudência, decidiu restringir o alcance do foro por prerrogativa de função.
Em maio de 2018, ao julgar a Questão de Ordem na Ação Penal 937 (AP 937 QO), o STF alterou significativamente sua compreensão do Art. 102, I, “b”. A partir dessa decisão, o entendimento passou a ser o seguinte:
O foro por prerrogativa de função no STF (e, por extensão, a outros tribunais superiores, embora o precedente seja focado no STF) aplica-se SOMENTE aos crimes cometidos durante o exercício do mandato e que tenham relação com as funções desempenhadas.
Isso significa que:
- Crimes cometidos antes do início do mandato: Não são alcançados pelo foro e devem ser julgados pela justiça comum.
- Crimes cometidos durante o mandato, mas sem qualquer relação com a função pública: Também não são abarcados pelo foro e devem ser remetidos à justiça comum. O exemplo clássico seria um parlamentar que comete um crime de trânsito em seu dia de folga; este caso seria julgado pela justiça comum, e não pelo STF, a menos que houvesse uma conexão comprovada com sua função.
- Crimes cometidos após o término do mandato: Com a perda da função que justificava o foro, a competência retorna para a justiça comum.
Essa mudança de interpretação foi um divisor de águas, visando reduzir a morosidade, combater a impunidade e permitir que o STF se concentrasse em sua missão primordial de guarda da Constituição. É nesse contexto de interpretação mais restritiva que se insere o debate atual sobre a competência para julgar ex-presidentes e as nuances que o voto do Ministro Fux trouxe.
Quem Tem Direito ao Foro Especial no Brasil?
A lista de autoridades que possuem o foro por prerrogativa de função é extensa e varia de acordo com a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e até mesmo Leis Orgânicas específicas. A seguir, destacamos os principais cargos e os tribunais responsáveis por julgá-los:
Presidente e Vice-Presidente da República
São julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em crimes comuns. A Constituição prevê um rito especial para o processo de crimes de responsabilidade, que ocorre no Senado Federal.
Senadores e Deputados Federais
Também são julgados pelo STF em crimes comuns, desde o momento da diplomação. É importante notar que essa prerrogativa se aplica apenas a crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados a ele, conforme entendimento pacificado pelo próprio STF em 2018 (conforme a interpretação da AP 937 QO mencionada acima). Crimes anteriores ou sem relação com a função pública devem ser julgados pela justiça comum.
Ministros do Supremo Tribunal Federal e Outros Tribunais Superiores
Os próprios Ministros do STF são julgados pelo STF, mas em composição plena (ou seja, por todos os outros ministros, excluindo o próprio julgado). Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) são julgados pelo STF.
Governadores e Prefeitos (e as Diferenças)
- Governadores: São julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em crimes comuns.
- Prefeitos: Em geral, são julgados pelos Tribunais de Justiça (TJs) dos respectivos estados, a não ser que o crime seja federal, caso em que a competência pode ser da Justiça Federal ou de um Tribunal Regional Federal (TRF). Essa variação mostra a complexidade da regra e como a jurisdição pode mudar dependendo do cargo e do tipo de crime.
Além dessas figuras, diversas outras autoridades, como membros do Ministério Público (Promotores e Procuradores), Desembargadores, Juízes, Conselheiros de Tribunais de Contas e membros de Tribunais Regionais, possuem foro especial em diferentes instâncias da Justiça.
As Principais Críticas e Controvérsias do Foro por Prerrogativa de Função
Apesar de sua fundamentação teórica na proteção das instituições, o foro por prerrogativa de função é alvo de constantes críticas e discussões na sociedade. A principal razão para isso é a percepção de que, na prática, ele se transforma em um verdadeiro “privilégio” que facilita a impunidade de políticos e outras autoridades.
Morosidade dos Processos em Cortes Superiores
Uma das críticas mais contundentes é a lentidão na tramitação dos processos criminais nas cortes superiores. Tribunais como o STF e o STJ possuem uma pauta de julgamentos extensa, com milhares de casos de diferentes naturezas (constitucionais, cíveis, administrativos, etc.). Isso faz com que processos criminais, que demandam tempo para instrução, recursos e julgamento, muitas vezes fiquem parados por anos, culminando na prescrição dos crimes e na consequente impunidade.
A sobrecarga dessas cortes e a dificuldade de conciliar o julgamento de ações criminais complexas com suas outras atribuições, como a guarda da Constituição, geram um gargalo processual que é visto como prejudicial à celeridade da justiça.
A Sensação de Impunidade
A morosidade e, por vezes, a prescrição de casos envolvendo figuras públicas, acabam por alimentar na população a sensação de que o foro por prerrogativa de função é uma “cortina” para proteger os poderosos. Casos midiáticos que se arrastam por décadas sem uma conclusão efetiva contribuem para a descrença no sistema judiciário e na igualdade de todos perante a lei. É essa percepção, mais do que a regra em si, que causa a maior parte do descontentamento social.
Tentativas de Revisão da Regra
Diante dessas críticas, há anos o Congresso Nacional discute propostas para restringir o alcance do foro por prerrogativa de função. Projetos de Emenda à Constituição (PECs) visam limitar o foro a um número menor de autoridades ou apenas a crimes cometidos em decorrência da função. A ideia é que, ao diminuir o número de processos nas cortes superiores e concentrar os julgamentos em instâncias mais ágeis, a justiça seja mais célere e eficaz para todos.
Embora o debate seja intenso e haja um forte apelo popular pela revisão da regra, a complexidade do tema e as diferentes visões sobre sua real finalidade jurídica tornam qualquer mudança um processo demorado e de difícil consenso.
O Debate Atual no STF: Um Marco na Discussão sobre o Foro
A recente discussão no STF sobre a competência para julgar o caso envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro, especialmente o voto do Ministro Luiz Fux pela “incompetência absoluta” da Corte, trouxe o foro por prerrogativa de função de volta ao centro das atenções. Esse debate não é apenas sobre um caso específico, mas sobre os limites e a interpretação de uma regra constitucional que impacta a cúpula do poder no Brasil.
O Caso do Ex-Presidente Bolsonaro e o Voto de Fux como Exemplo
O voto do Ministro Fux, ao argumentar pela incompetência absoluta do STF para julgar o ex-presidente em um determinado contexto, baseia-se em uma interpretação rigorosa da aplicação do foro. Em termos simples, quando um tribunal é declarado “absolutamente incompetente”, significa que ele não possui, sob nenhuma hipótese legal, a atribuição para julgar aquele tipo de caso ou aquela pessoa. É como se a lei dissesse: “este tribunal não é o endereço certo para este processo.”.
A questão central levantada é se o ex-presidente, ao deixar o cargo, manteria ou não o foro perante o STF para atos supostamente cometidos durante o mandato, mas que poderiam ser desvinculados do exercício da função presidencial. A complexidade surge da linha tênue entre o que é um ato de ofício (ligado ao cargo) e o que é um ato pessoal, e como a mudança de status (de presidente para ex-presidente) afeta a competência. O voto de Fux sugere uma visão mais restritiva da aplicação do foro, defendendo que, uma vez cessada a função, o processo deve ser remetido à primeira instância, salvo quando o crime for intrinsecamente ligado ao cargo.
Essa postura visa coibir a “perpetuação da jurisdição”, ou seja, a ideia de que o foro se manteria indefinidamente, mesmo após a perda da função, para crimes que não guardam relação direta e essencial com o exercício do cargo. A discussão, portanto, não é sobre a culpa ou inocência de quem quer que seja, mas sobre a quem compete o julgamento, em respeito às regras de competência e à celeridade processual.
Quando o Foro se Mantém ou se Perde
Conforme a interpretação restritiva do STF a partir de 2018, o foro por prerrogativa de função se aplica apenas a crimes cometidos DURANTE o exercício do cargo e EM RAZÃO DA FUNÇÃO. Isso significa que:
- Crimes cometidos antes de assumir o cargo: Não são abrangidos pelo foro e devem ser julgados pela justiça comum.
- Crimes cometidos após deixar o cargo: Também não são cobertos pelo foro e são julgados pela justiça comum.
- Crimes cometidos durante o mandato, mas SEM RELAÇÃO com a função: Em tese, também seriam julgados pela justiça comum, embora essa seja a área mais controversa e de interpretação.
- Crimes cometidos durante o cargo E EM RAZÃO DA FUNÇÃO: São aqueles que justificam a manutenção do foro perante o tribunal superior, mesmo que a autoridade perca o cargo durante o processo. Esse é o ponto crucial que o debate atual busca refinar.
O voto do Ministro Fux, ao questionar a competência do STF no caso específico do ex-presidente, reforça a tendência de uma interpretação ainda mais restritiva do foro, buscando limitar o seu alcance para que não se torne um salvo-conduto para quem já não exerce o cargo que o justificava.
O Que Isso Significa para o Cidadão Comum?
Pode parecer que as discussões sobre o foro por prerrogativa de função e as decisões do STF são distantes da realidade do cidadão comum. No entanto, o que acontece nas altas esferas do Judiciário tem um impacto direto na percepção de justiça, na credibilidade das instituições e na própria efetividade da lei em nosso país.
A Importância da Clareza nas Regras de Julgamento de Autoridades
Um sistema jurídico claro e transparente, onde as regras de julgamento são bem definidas e aplicadas de forma consistente, é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa. Quando há morosidade ou a impressão de que “dois pesos e duas medidas” são aplicados, a confiança nas instituições é abalada.
O debate sobre o foro, portanto, não é apenas um tecnicismo jurídico. É uma discussão sobre a igualdade de todos perante a lei, sobre a responsabilidade dos agentes públicos e sobre a capacidade do Estado de punir quem comete crimes, independentemente do cargo que ocupe ou tenha ocupado. Ao acompanhar e entender esses debates, o cidadão comum contribui para a fiscalização do poder e para a exigência de um sistema de justiça mais eficiente e equitativo.
Em última análise, a forma como lidamos com a competência criminal de nossas autoridades reflete diretamente o nível de maturidade democrática de um país. O objetivo final é garantir que a justiça seja entregue de forma eficaz, sem que a proteção às instituições se converta em impunidade individual.
Conclusão
O foro por prerrogativa de função é um tema complexo, com raízes históricas e fundamentos constitucionais importantes para a estabilidade das instituições. No entanto, sua aplicação prática, especialmente diante da morosidade processual e da percepção de impunidade, tem gerado intensos debates e críticas. A discussão atual no STF, como exemplificado pelo voto do Ministro Fux, demonstra a busca por uma interpretação ainda mais restritiva da prerrogativa, alinhando-a à sua finalidade original: proteger a função pública, e não o indivíduo.
Entender esses mecanismos jurídicos é fundamental para qualquer cidadão que deseja compreender o funcionamento do nosso Estado de Direito. No “Explica Lei”, nosso compromisso é trazer essa clareza para você, desmistificando o universo jurídico e empoderando-o com conhecimento.
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